Neste mês de dezembro/2025, temos a alegria de anunciar a publicação de dois artigos que procuram desenvolver a pesquisa EMVA. Seguem os links:
Azevedo & Moraes & Willon (2025). Estudo do duplo impacto da atuação da Petrobras entre 2016 e 2022: recuperação da taxa geral de lucro e desproporção interdepartamental. Brazilian Keynesian Review, vol. 11, n. 2. DOI: https://doi.org/10.33834/bkr.v11i2.393
Azevedo & Moraes (2025). Os esquemas de reprodução de Marx enquanto ferramenta econômica: uma análise da economia brasileira entre 2010 e 2022. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 73. DOI: https://revistasep.org.br/index.php/SEP/article/view/1254
Em Azevedo & Moraes & Willon (2025), analisamos os desdobramentos da crise de 2014-2015 a partir dos efeitos da nova política estabelecida para Petrobras a partir de 2016, quando o comando da empresa passou a se pautar pela diminuição das exigências de compras internas e pela venda de ativos no segmento de refino. Observamos que o duplo impacto dessas políticas é, de um lado, a recuperação da taxa geral de lucro da economia brasileira e, de outro, a manutenção de uma elevada desproporção entre os departamentos de produção.
O duplo impacto observado demonstra a elevada capacidade de encadeamento interdepartamental da Petrobras na economia brasileira. Nesse sentido, as evidências observadas sugerem a importância da retomada do controle social da empresa como um instrumento não apenas de política industrial e energética, mas fundamentalmente para a mudança estrutural do país por meio do fomento à internalização da produção social e pela regulação indireta das relações interdepartamentais.
Em Azevedo & Moraes (2025), elaboramos esquemas de reprodução da economia brasileira entre 2010 e 2022. O objetivo é analisar a evolução da condição de equilíbrio interdepartamental e sua relação com a variação da taxa média de lucro no período, com foco na trajetória e no papel do desmatamento nos biomas brasileiros. A análise dos esquemas de reprodução construídos a partir da amostra de empresas indica que as crises da economia brasileira tendem a aparecer antes sob a forma de um recuo do departamento de produção de meios de produção (D-I).
Além das hipóteses apresentadas em O Capital de Marx para explicar a compossibilidade entre o aumento da taxa média de lucro, o encolhimento de D-I e o crescimento de D-II (departamento de produção de meios de consumo), propomos uma adicional que designamos como hipótese da autocolonização, em que parte do desequilíbrio interdepartamental provocado pelo recuo do departamento de produção de meios de produção é compensado pela diminuição de cobertura florestal. No artigo, apresentamos evidências disso a partir de um cotejo entre a trajetória da desproporção interdepartamental e a área perdida de cobertura florestal nos biomas brasileiros e na região do MATOPIBA ao longo do período. Os dados sobre o desmatamento foram obtidos através do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg: https://seeg.eco.br/dados/).
Alexander A. Bogdanov foi um polímata soviético e personagem importante na construção do Partido Operário Social-Democrata Russo, ao lado de Lênin, desde sua fundação em 1898. As discussões da Tectologia, publicada entre 1913 e 1928, remontam aos debates entre Bogdanov e Lênin a respeito da natureza do materialismo. Mas é também um trabalho que ultrapassa o período pré-revolucionário. O tradutor de Bogdanov para o inglês, George Gorelik, escreve que a tectologia “se ocupa de regularidades universais estruturais, de tipos universais de sistemas, das leis mais gerais de sua transformação e das leis fundamentais da organização dos elementos da natureza, da experiência e do conhecimento”. A cibernética, o estruturalismo, a teoria geral dos sistemas e a teoria da catástrofe encontram na Tectologia seus fundamentos precursores.
Publicaremos, por partes, uma tradução direta do russo do livro de Bogdanov. A tradução é de Raquel de Azevedo. Bons estudos!
Parágrafo 2. A unidade dos métodos organizacionais
Tal é o ponto de vista organizacional. É absolutamente simples e, na sua simplicidade, é imutável. O que ele nos oferece, quais caminhos ele abre?
A prática e a teoria pouco se beneficiariam se a questão se reduzisse à proposição filosófica: “tudo é organização”. O que é necessário e relevante para a prática e para a teoria são os métodos. Em relação a eles a conclusão é clara: “todos os métodos são essencialmente organizacionais“. A tarefa é, portanto: compreender e estudar todos os métodos enquanto métodos organizacionais. Isso pode ser um grande avanço, mas com uma condição: que os métodos organizacionais sejam passíveis de generalização científica.
Se os métodos organizacionais fossem uns em um domínio, completamente diferentes em um segundo e ainda outros em um terceiro, se, por exemplo, a organização das coisas, isto é, a técnica, nada tem em comum com os métodos de organização das pessoas, isto é, a economia ou a organização da experiência, isto é, o mundo das ideias, a assimilação desses métodos não seria de modo algum mais simples apenas por serem todos apontados como métodos organizacionais. Tudo muda se na investigação se verificar que é possível estabelecer uma conexão entre eles, um parentesco, que é possível submetê-los a leis gerais. Nesse caso, o estudo dessa conexão, dessas leis, permitirá que as pessoas assimilem da melhor maneira e desenvolvam sistematicamente esses métodos, esse estudo se torna a ferramenta mais potente de toda a prática e de toda a teoria. O que vale, na realidade: o primeiro ou o segundo casos?
A diferença mais profunda que conhecemos na natureza é a diferença entre espontaneidade e consciência, entre a ação cega das forças da natureza e os esforços sistemáticos das pessoas. Aqui se espera a maior heterogeneidade dos métodos, a maior irredutibilidade à unidade. Não há melhor lugar para começar a pesquisa.
A investigação se depara, antes de mais nada, com a imitação humana da natureza nos métodos e procedimentos das atividades organizacionais.
A natureza organiza a resistência de vários organismos vivos à ação do frio, revestindo-os com penugem, penas ou outros invólucros pouco condutores de calor. O ser humano alcança, da mesma maneira, os mesmos resultados, ao fabricar roupas quentes para si. O desenvolvimento espontâneo adaptou o peixe ao movimento na água, fazendo seu corpo assumir uma forma e uma estrutura determinadas. O ser humano dá uma forma semelhante a seus barcos e navios, além de reproduzir a estrutura do esqueleto do peixe: a quilha e os quadros internos da embarcação correspondem exatamente à sua espinha e às suas costelas. As sementes de várias plantas, os animais com membranas voadoras e outros exemplares semelhantes se deslocam de uma parte a outra como “caravelas”; o ser humano dominou o método da navegação à vela e o emprega amplamente ao longo da história. Os instrumentos naturais cortantes e pungentes dos animais, por exemplo, os caninos e as garras dos predadores, provavelmente serviram de modelos para as facas e lanças dos selvagens primitivos etc. É possível encontrar tantos exemplos assim quanto se queira na história da civilização.
A própria possibilidade de imitação é, em essência, prova suficiente de que não há distinção fundamental e intransponível entre o trabalho organizacional espontâneo da natureza e o trabalho conscientemente planejado dos seres humanos. Esta é uma prova suficiente da homogeneidade fundamental das funções organizativas dos seres humanos e da natureza: o idiota não pode imitar a obra do gênio, o peixe não pode imitar a eloquência do orador, o lagostim não pode imitar o voo do cisne; a imitação está, em toda parte, constrangida aos limites das propriedades comuns, aos limites da homogeneidade; não pode haver imitação onde não há nada em comum. Mas essa comunhão fundamental se manifesta de maneira ainda mais visível e convincente onde o ser humano, sem imitar a natureza, elabora mecanismos organizacionais que mais tarde ele descobre existirem também na própria natureza.
Toda a história do desenvolvimento da anatomia e da fisiologia está repleta de descobertas desses mecanismos nos organismos vivos: dos mais simples aos mais complexos, são mecanismos que haviam sido inventados de maneira independente pelos seres humanos. Assim, o esqueleto do sistema motor humano representa um sistema multiforme de alavancas, no qual existem duas roldanas (uma para o músculo cervical e outra para o músculo ocular); mas as alavancas foram empregadas pelos seres humanos para deslocar pesos milênios antes dessa descoberta dos anatomistas, como também as roldanas são utilizadas há muitas centenas de anos. As bombas valvuladas de sucção e injeção foram construídas muito antes de se desvendar um aparelho muito semelhante a elas no coração. Assim como os instrumentos musicais que contêm ressonadores e membranas acústicas foram inventados muito antes de terem sido descobertas a estrutura e a função do aparelho fonador dos animais, é também altamente improvável que os primeiros sistemas de lentes tenham sido feitos como imitação do cristalino do olho. Igualmente a estrutura de órgãos elétricos dos peixes foi investigada muito depois de os físicos terem construído baterias de condensadores com o mesmo princípio.
Em um domínio restrito, estes são os primeiros exemplos que saltam aos olhos dentre tantos outros que poderiam ser citados. Mas aqui há uma comparação de outro tipo: a economia social dos humanos e a dos insetos superiores. Está evidentemente fora de questão que haja imitação entre eles. No entanto, há um paralelismo assombroso tanto nos modos de produção como nas formas de cooperação. São fatos bem conhecidos que cupins e formigas constroem moradias complexas e subdivididas; ou que muitas formigas mantêm pulgões como uma espécie de gado leiteiro. Tampouco é surpreendente que se encontrem rudimentos de agricultura entre algumas espécies americanas: a monda de ervas daninhas em torno de cereais comestíveis. É muito provável que também entre os humanos tenha sido assim o início da agricultura. O cultivo de fungos comestíveis dentro de formigueiros por formigas-cortadeiras no Brasil é igualmente notório. A ampla cooperação e a complexa divisão do trabalho entre os insetos sociais são conhecidas por todos. É verdade que neste caso a divisão do trabalho é principalmente “fisiológica”, isto é, ligada diretamente à estrutura especial do organismo de variados grupos, como os trabalhadores, os soldados etc.; mas é preciso notar que também entre os humanos a divisão originária do trabalho era justamente fisiológica, fundada na distinção entre os organismos masculino, feminino, adulto, infantil e senil. A natureza geral da organização das formigas é matriarcal e tribal; assim, a mãe não é a coordenadora do trabalho, nem a autoridade em sua comunidade, mas seu vivo laço de sangue. Há muitas razões para supor que esse foi o papel das progenitoras nas formas primitivas do matriarcado entre os humanos. Nota-se entre as formigas até mesmo fenômenos semelhantes aos vícios sociais humanos, em particular o alcoolismo. Em muitos formigueiros, besouros-hóspedes são mantidos sob os cuidados das formigas-hospedeiras para que elas possam se deleitar com secreções muito agradáveis por eles produzidas. Os resultados são semelhantes àqueles observados entre humanos: degeneração parcial e às vezes completa de formigueiros inteiros.
Tal é o paralelismo organizativo-cultural criado por um desenvolvimento totalmente independente de ambas as partes: podemos considerar inequívoco que os antepassados comuns dos quais descenderam os humanos e os insetos não eram de modo algum animais sociais.
Ainda mais notáveis são as coincidências que se revelam no próprio domínio biológico entre formas totalmente distantes entre si, criadas de maneira independente.
Há um imenso paralelismo entre os métodos de reprodução dos animais superiores e das plantas superiores com flores, munidas com suas complexas divisões sexuais, embora seja possível afirmar com segurança que os protistas unicelulares a partir dos quais os dois ramos do reino da vida se bifurcam não possuíam métodos de reprodução semelhantes. De acordo com as informações disponíveis, só poderia haver reprodução simples de células da mesma espécie. Portanto, essa divisão sexual, que é um modo de fabricar novas combinações de propriedades vitais, desenvolveu-se independentemente em ambos os casos. Não menos notável é outro paralelismo apenas recentemente descoberto: entre o sistema neuromuscular dos organismos multicelulares e o aparelho análogo dos ciliados superiores unicelulares, com o centro correspondente ao cérebro, às fibras transmissoras e aos elementos de contração. Aqui tampouco pode se tratar de uma herança de antepassados comuns.
É bem conhecido que as ordens isoladas de mamíferos superiores não podem ter se originado dos respectivos grupos de marsupiais. No entanto, há entre eles um paralelismo assombroso de modo de vida, de estrutura e até de aparência física: basta comparar os marsupiais lobos, os marsupiais roedores, os marsupiais insetívoros etc., com representantes semelhantes dos mamíferos superiores.
Assim, os caminhos da criação espontâneo-organizativa da natureza e os métodos do trabalho consciente-organizativo dos humanos, tomados separadamente e em conjunto, podem e devem estar sujeitos a uma generalização científica. Ocorre que o velho pensamento traçou seus limites “intransponíveis” não apenas nesse caso, mas estabeleceu uma série de outras diferenças “absolutas”, diferenças de essência. Já examinamos uma dessas diferenças, entre a natureza “viva” e a natureza “morta”, e verificou-se que, do ponto de vista organizacional, ela não é de modo algum “intransponível”, que só é diferença de graus de organização. Também vimos combinações organizacionais inteiramente paralelas de um lado e de outro desse limite — os processos “metabólicos”, de “reprodução”, de “restauração da forma que sofre perturbação” no mundo inorgânico etc. Podemos citar ainda outras ilustrações notáveis dessa homogeneidade fundamental. Os sistemas solares planetários, num degrau da escada das formas inorgânicas, e a estrutura do átomo, tal como a ciência moderna o representa, no outro, são caracteristicamente de tipo centralista: um complexo “central” — o sol, o núcleo elétrico positivo do átomo — aparece, por excelência, como determinante dos movimentos e das relações das outras partes e do todo. No reino da vida, o tipo centralista é um dos mais comuns, basta recordar o papel do cérebro entre organismos animais, dirigentes de organizações sociais autoritárias, rainhas de abelhas e de formigas etc. Outro tipo muito difundido é a combinação de uma membrana rígida ou elástica, mas geralmente mecanicamente mais estável, com um conteúdo líquido mais móvel ou menos estável: essa parece ser uma forma de equilíbrio da maioria dos planetas do universo ou de uma simples gota de água, na qual a membrana cria uma camada superficial com suas propriedades particulares; e, ao mesmo tempo, parece ser uma forma de estrutura comum às células vegetais e frequentemente às células animais e a uma multiplicidade de organismos, “revestidos” com um esqueleto externo.
Numa escala ainda mais ampla, encontramos o método mais difundido de manutenção ou restauração do equilíbrio na natureza: as oscilações periódicas ou “ondas”. Trata-se de uma espécie de modelo geral para os inumeráveis processos do mundo inorgânico, tanto os observados diretamente quanto os aceitos pela ciência por necessidade teórica: ondas na água, vibrações sonoras do ar, vibrações térmicas nos sólidos, raios elétricos, luminosos e “invisíveis”, das ondas de Hertz aos raios X; já no outro extremo do Universo, as “rotações” dos corpos celestes podem ser representadas como oscilações periódicas complexas… Mas este modelo é igualmente aplicável, sem restrições, ao reino da vida: quase todos os seus processos são de tipo oscilatório periódico. Assim são o pulso e a respiração, o trabalho e o descanso de cada órgão, a vigília e o repouso do organismo. A alternância de gerações representa uma série de ondas sobrepostas — o verdadeiro “pulso da vida” pelos séculos, etc.
A maioria dos filósofos e uma parte considerável dos psicólogos ainda admitem outro “limite intransponível”: entre a natureza “material” e a “espiritual”, ou entre a natureza “física” e a “psíquica”. Mais uma vez, seria possível supor que os métodos de organização são completamente irredutíveis a uma unidade. No entanto, os mesmos filósofos e psicólogos reconhecem, em graus variados e sob distintas designações, o paralelismo entre fenômenos psíquicos e processos físicos nervosos. O paralelismo significa precisamente que a relação dos elementos e das combinações de elementos, de um lado, corresponde às relações, de outro, ou seja, existe uma unidade elementar dos modos de organização. Como poderia uma “imagem psíquica” — uma percepção ou uma representação — corresponder a um “objeto físico” se as partes de uma não estivessem ligadas de maneira similar às partes da outra? Por exemplo, o mesmo ritmo oscilatório de trabalho e descanso, que é próprio aos processos físicos no organismo, manifesta-se de maneira perfeitamente paralela também nos processos psíquicos; e muitas vezes tal ritmo é observado em processos psíquicos em que ainda não é possível constatá-lo claramente por mudanças fisiológicas, mesmo que, digamos, sob a forma de “ondas de atenção”. E qualquer produto da “criação espiritual” – uma teoria científica, um trabalho poético, um sistema de normas jurídicas ou morais – possui uma arquitetura própria, representa uma totalidade subdividida de partes que desempenham funções variadas e que se complementam mutuamente: o princípio de organização é o mesmo em cada organismo fisiológico.
Não apenas a consciência burguesa, mas também o pensamento da maioria dos cientistas especializados, quando confrontado com uma profunda semelhança das relações nos mais diversos e mais afastados campos da experiência, tranquiliza-se com a fórmula: “são simples analogias e nada mais”. O ponto de vista é infantil e ingênuo; para ele, a questão se esgota exatamente onde começa o enigma e onde surge a necessidade de investigação. Dada a infinita riqueza do material do universo e a infinita variedade de formas, de onde vêm essas analogias que insistente e sistematicamente se repetem e se ampliam com o conhecimento? Considerá-las todas como meras “coincidências fortuitas” significa introduzir uma imensa arbitrariedade na visão de mundo e até mesmo colocar-se em evidente contradição com a teoria das probabilidades. Há uma conclusão cientificamente possível: a unidade real dos métodos de organização, sua unidade em toda parte – nos complexos psíquicos e físicos, na natureza viva e morta, no trabalho das forças espontâneas e na atividade consciente das pessoas. Até agora, essa unidade não foi precisamente determinada, investigada e estudada: até agora não existiu uma ciência universal da organização. Chegou sua hora.
In: BENSAÏD, Daniel. Marx, manual de instruções, 2015.
O objetivo desta nota é refutar a teoria vulgar que afirma que o fenômeno econômico da inflação é causado pelo aumento dos salários. Essa ideia é muito comum entre economistas não-monetaristas (por exemplo, keynesianos) e foi resgatada no recente debate sobre a chamada “PEC do fim da escala 6×1”. Como pode ser observado na nota da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG)2.
“A redução da carga de trabalho, conforme prevê a proposta em debate, também provocaria um aumento de custos para as empresas, uma vez que, para manter a mesma escala de produção e atender à demanda de serviços durante toda a semana, muitas empresas precisarão contratar novos empregados, aumentando os seus custos operacionais”, explica a Fiemg. A entidade também aponta possíveis impactos na inflação, uma vez que o aumento dos custos das empresas será repassado aos consumidores por meio da elevação dos preços de produtos e serviços”.
Há pelo menos duas abordagens teóricas burguesas sobre a inflação. Uma delas é a teoria monetarista, a qual diz que os preços sobem em função do aumento da base monetária sobre a produção real. Para essa teoria, o dinheiro é neutro e é injetado de fora para dentro da economia real. Essa pode ser expressa pela seguinte equação: MV=PY, onde M é a moeda, V a velocidade de circulação, P o índice de preços, e Y produto real da economia (PIB). Ainda de acordo com essa teoria, V é estável e Y está dado. Sendo assim o aumento de M, causaria uma elevação dos preços, pois, P = (M.V)/Y.
Para Karl Marx, que foi ferrenho opositor dessa teoria, a abordagem monetária quantitativista comete o erro de não compreender que dado o nível da atividade econômica em relação à capacidade instalada, Y, assim como considerando constante o valor do dinheiro e sua velocidade de circulação, só circula a quantidade de dinheiro necessária, pois, o restante é entesourado. Além do mais, o dinheiro não é neutro, isto é, se o ouro circula porque tem valor, o papel-moeda tem valor porque circula, portanto, seu valor é determinado pelo seu montante (quantidade) que, em última instância, deve ser respaldado pelas reservas do Banco Central (em dinheiro mundial ou conversível). Os erros do monetarismo são considerar o dinheiro neutro em relação às variáveis reais de uma determinada economia, além de entenderem que o dinheiro é injetado desde fora da economia, e claro, ignorar o papel do entesouramento.
Outra teoria burguesa da inflação nos diz, que essa é causada pela elevação dos salários, — como podemos ver na nota da FIEMG — “uma vez que o aumento dos custos das empresas será repassado aos consumidores por meio da elevação dos preços de produtos e serviços”. O que está subjacente à nota da FIEMG é um velho dogma com a qual Marx se deparou em sua época, a noção vulgar dos custos de produção. Por meio dela, os preços são explicados como a soma das partes. Uma vez que o salário é igual ao valor ou preço do trabalho — ou, como vai dizer Marx, o capitalista não nos paga pelo nosso trabalho, e sim, pela nossa força de trabalho, logo o trabalho que é a força de trabalho em ato é apropriado gratuitamente pelo direito de propriedade —, o salário é entendido como um custo, sobre o qual surge um valor a mais ou mark-up (lucro e a renda da terra). Em Salário, Preço e Lucro, Marx comenta sobre essa teoria,
“[…] não é o empregador capitalista que acrescenta ao valor da mercadoria um valor arbitrário para seu lucro, acrescentando em seguida outro valor para o proprietário da terra e assim por diante, de tal maneira que a soma destes valores arbitrariamente fixados constituísse o valor total. Vides, portanto, o erro da ideia correntemente exposta, que confunde a divisão de um dado valor em três partes, com a formação desse valor, mediante a soma de três valores independentes, convertendo desta maneira numa grandeza arbitrária o valor total, de onde saem a renda territorial, o lucro e o juro“3.
Assim, para o nosso burguês ilustrado da FIEMG, por causa da redução da jornada de trabalho haveria a necessidade de contratar mais trabalhadores, o que aumentaria os custos de produção. Consequentemente, o aumento de salário teria que ser repassado aos preços, levando à inflação. Aqui não existe lei econômica, apenas o arbítrio do burguês! Nesse sentido, além da vontade do capitalista, a outra variável chave é o salário, ou o preço do trabalho (força de trabalho). Então, devemos perguntar: o que determina o preço do trabalho (salário)?
Como sabemos, o preço do trabalho (salário) é determinado pelo preço do conjunto das mercadorias necessárias (cesta de subsistência) para a reprodução da força de trabalho. É por meio dessa noção que se estabelece, por exemplo, o cálculo oficial do salário-mínimo. Dessa forma, somos obrigados, pela teoria apresentada pela FIEMG, a concluir que os preços das mercadorias são determinados pelo preço do trabalho e o preço do trabalho é determinado pelo preço das mercadorias. Esse pensamento é o mais puro raciocínio tautológico e circular4. Outro argumento subjacente à nota da FIEMG pode ser expresso nos seguintes termos: como haveria uma maior demanda por trabalho fruto da redução da jornada, os salários aumentariam e isso geraria um maior poder de compra dos trabalhadores o que faria com que houvesse um aumento geral de preços. Vamos nos deter nesse argumento descrito aí.
Ao que tudo indica, nosso sábio burguês está pressupondo a inexistência do aumento da produtividade, o que por si só derrubaria a tese dele. Ainda assim, supondo que haja um aumento dos salários e a produtividade siga constante de modo a diminuir os lucros — vale notar que isso nem sempre ocorre: por exemplo, é possível (e até muito comum) que os salários aumentem devido à elevação da produtividade, o que, em termos marxistas, expressa-se pelo incremento via mais-valia relativa —, porém, seguindo o caso em que ocorra queda na massa dos lucros, a taxa de lucro no departamento II não é necessariamente afetada se a demanda por meios de consumo de subsistência aumentar e a por meios de consumo de luxo cair.
Ainda assim, poderíamos ter uma alteração da taxa de lucro no departamento que produz meios de consumo (departamento II da economia). Em livre concorrência, quando um setor da economia registra maior lucratividade, os capitais tendem a migrar para ele, o que gera um aumento da oferta desses produtos — no caso, meios de consumo de subsistência. Com o aumento da oferta, os preços dessas mercadorias caem, ou seja, a Lei do Valor se impõe novamente como a força de uma lei natural. Marx chamou esse mecanismo de equalização das taxas de lucro. O que se altera nesse processo, dada uma produtividade constante, portanto, é a taxa de lucro da produção de meios de consumo, e não o nível geral de preços.
Para finalizar este texto e não perder mais tempo com as falácias dos burgueses e seus aparelhos privados de hegemonia, é importante dizer que o valor novo produzido na economia que aparece nas rubricas contábeis como lucro, juros, renda da terra, aluguel, impostos, tem apenas uma fonte: o trabalho não pago que o capitalista se apropria. Afinal, o capitalista nos paga pela nossa força de trabalho que é uma mercadoria especial, capaz de gerar valor além do que ela própria vale.
Gostaria de encerrar com as palavras de Marx, em O Capital, Livro I, capítulo 8 (A jornada de trabalho), ressaltando a importância da luta pela redução da jornada.
“Para ‘se proteger’ contra a serpente de suas aflições, os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão. No lugar do pomposo catálogo dos ‘direitos humanos inalienáveis’, tem-se a modesta Magna Charta de uma jornada de trabalho legalmente limitada, que afinal deixa claro quando acaba o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que lhe pertence”5.
Pelo fim da jornada de trabalho 6×1, pela redução para 30 horas sem redução de salários!!!
Doutorando em Filosofia PPGFIL/UFMG e educador popular ↩︎
In: Salário, Preço e Lucro, “Os Economistas”, p. 170 ↩︎
Para quem quiser uma discussão mais elaborada sobre os salários, remetemos os leitores para o texto de nossa autoria, Marx e o problema dos salários, disponível em: https://pcb.org.br/portal2/30358. ↩︎
In: O Capital, Livro I, cap. 8, Boitempo, p. 373-374 ↩︎
Imagem retratando um lema da luta trabalhista no século XIX pela regulamentação da jornada de trabalho de 8 horas (8 horas de trabalho, 8 horas de recreação, 8 horas de descanso)
Atualmente, segue em debate a possibilidade de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) visando regulamentar a redução da jornada de trabalho conhecida como 6×1 (seis dias de trabalho, um dia de folga). Para tanto, a deputada Erika Hilton (PSOL) busca recolher o número suficiente de assinaturas entre os demais deputados federais para protocolar junto à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados a chamada “PEC do fim da escala 6×1”2.
No debate político nacional brasileiro mais recente, essa discussão sobre a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários vem sendo feita pelo menos desde as eleições de 2022, em particular através da candidatura da economista e professora Sofia Manzano (PCB)3. Trata-se, na verdade, de um debate que tem sido levantado em várias economias nacionais e inclusive mais recentemente foi testado um programa piloto na Inglaterra, envolvendo 61 empresas e cerca 3 mil trabalhadores, entre julho e dezembro de 20224. Os resultados parecem indicar que a medida não atrapalhou os negócios, pelo contrário, além de sugerir que há uma melhora no bem-estar de trabalhadores que tiveram sua jornada reduzida sem redução salarial5.
Mas como implementar tal política econômica? Será que a aplicação em uma economia capitalista subdesenvolvida de algo experimentado em uma economia capitalista avançada terá os mesmos resultados? Pois bem, aqui está o cerne do problema econômico da questão formulada como título desse texto. Isso porque a economia brasileira não é igual a economia inglesa, o que por si só já deveria suscitar alguma suspeita sobre a possibilidade de sua aplicação tal e qual no Brasil. Ainda assim, quero ressaltar, desde uma perspectiva marxista, outros elementos importantes no intuito de estimular o debate científico sobre o assunto.
Nesse sentido, em primeiro lugar, é preciso compreender a relação entre o todo e a parte que conformam uma determinada economia nacional. Quer dizer, entre o capital individual, o trabalhador individual, e o capital social total, o trabalho social. A mediação entre a parte (capital individual, trabalhador individual) e o todo (capital social total, trabalho social) se expressa em certas tendências gerais que definem as leis econômicas vigentes. Tais leis não são absolutas, mas tendenciais, pois são a resultante das contradições do próprio desenvolvimento capitalista. Sendo assim, há contratendências em operação que podem, sob certas circunstâncias, modificar as leis econômicas vigentes.
Em segundo lugar, temos que entender o que é a jornada de trabalho e como ela se define. Sob o assalariamento, a jornada de trabalho apresenta três dimensões: a intensidade, a duração e como ela se distribui ao longo da semana. Apesar dos contratos de trabalho serem firmados individualmente, há tendências gerais operando na economia brasileira e que resultam em certos elementos definidores de uma totalidade social, tais como, salários médios, jornada média de trabalho (medida em horas), etc. Sem entrar no mérito específico de como se define a jornada de trabalho a nível social – algo que demanda esforço além do objetivo aqui desta entrada -, podemos apenas constatar que tais elementos se definem e desenvolvem de maneira histórico-social. Ou seja, não são eternos nem universais, mas frutos do longo processo de transição de um modo de produção pré-capitalista para um capitalista, o qual, por sua vez, estabelece as leis de funcionamento autorregulado do mercado de trabalho, do mercado de terras e do mercado de dinheiro em uma economia. Esse processo avança em permanente transformação condicionada pela trajetória institucional e caracteriza um determinado desenvolvimento capitalista nacional.
A economia brasileira apresenta especificidades próprias em seu desenvolvimento, que decorrem da natureza invertida do processo de industrialização, se comparado, por exemplo, com a experiência inglesa. Em vez de iniciar por meio de uma diferenciação do departamento de produção de meios de produção (D-I) para então se diferenciar e configurar um departamento de produção de meios de consumo (D-II), como se observou na economia inglesa, o caso brasileiro se dá às avessas. A industrialização, que pressupõe o assalariamento, iniciou-se aqui primeiro constituindo um D-II, cuja expansão dependia da capacidade de exportar meios de consumo e se assentava em uma estrutura econômica dual ou heterogênea (combinação articulada entre o moderno e o arcaico). Isto é, uma economia nacional cuja propagação do progresso técnico entre os ramos da produção se dá de maneira a perpetuar o subdesenvolvimento.
Tal especificidade acarretou a configuração de um mercado de trabalho com características próprias e que conduziram a uma tendência ao subemprego estrutural. O que isso quer dizer? Significa que a tendência dominante no desenvolvimento capitalista brasileiro configura uma totalidade social em que persistem empregos de baixa produtividade, alta rotatividade e precariedade, que efetivamente caracteriza a maior parte do emprego da força de trabalho. Como mudar?
Considerando que o mercado de trabalho em uma economia subdesenvolvida apresenta um desenvolvimento desigual e combinado entre o moderno e o arcaico, para mudar esse cenário teríamos que aprofundar um processo de industrialização capaz de encadear os ramos da produção social de modo que a própria heterogeneidade estrutural pudesse ser superada. Dito de outra maneira, tal processo de industrialização exigiria uma reorientação da acumulação de capital para que o D-I puxasse o desenvolvimento da economia brasileira. Porém, o que se observa é justamente o aprofundamento de um processo de desindustrialização e desnacionalização no Brasil, em particular do D-I, o qual avança desde o final da década de 1980.
A história da economia brasileira revela que tal sentido da acumulação de capital somente ocorreu sob a liderança de empresas estatais e seguindo uma orientação política centralizada, ainda que sem a devida continuidade no tempo. Foi assim ao longo das décadas de 1930-45, sob o comando de Getúlio Vargas, como também no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), entre 1975 e 1979. Isso porque o capital privado segue a lógica da autovalorização, que para se efetivar não requer uma dimensão de acumulação de capital como a necessária para o desenvolvimento de uma industrialização que encadeie de maneira homogênea a propagação do progresso técnico nos ramos da produção social. A não continuidade de tal orientação da acumulação de capital se deve à natureza subordinada do poder constituído no Estado brasileiro em relação à economia dos EUA, cuja influência sobre a economia brasileira é relevante no que diz respeito às condições de financiamento da produção e da circulação do capital, assim como de acesso à tecnologia.
A mudança estrutural no mercado de trabalho brasileiro que aponte para o fim da tendência ao subemprego estrutural significa elevar o bem-estar da classe trabalhadora, na medida em que ela indique uma tendência à homogeneização do mercado de trabalho em direção às características tendenciais do desenvolvimento capitalista. A redução da jornada de trabalho é uma tendência modernizante que o progresso técnico das forças produtivas tem apontado. Para tanto, tal processo de industrialização deveria aumentar o grau do controle social sobre a economia brasileira, refletindo uma maior capacidade da política econômica controlar os ciclos econômicos de maneira duradoura e difundir homogeneamente o progresso técnico, de modo a possibilitar uma discussão real sobre o aproveitamento social do incremento das forças produtivas no sentido de criar condições sociais para uma redução da jornada de trabalho sem redução salarial.
In: BENSAÏD, Daniel. Marx, manual de instruções, 2015.
Mas pode uma mudança jurídica, via PEC, por exemplo, alterar o estado de coisas? É claro que as leis econômicas se definem também por meio do Estado, mas não é o Estado que as estabelece, em particular um Estado estruturado na “livre” concorrência econômica e política. Em uma sociedade de mercado, as leis sociais, em particular as econômicas, também expressam sua substância no Direito constituído, muito embora haja um permanente descompasso dado pela própria finalidade autoexpansiva de uma economia moderna contrastar com a relativa fixidez da superestrutura jurídico-política. Nesse sentido, mudar juridicamente uma lei econômica não vai necessariamente ter o resultado que se espera, pois há determinações estruturais que dizem respeito à configuração do mercado de trabalho brasileiro. Dada a tendência ao subemprego no mercado de trabalho brasileiro, uma mera mudança jurídica pode apenas conduzir o conjunto das relações de produção para uma adaptação dentro da ordem vigente sem realmente transformá-la.
Na atual conjuntura em que a Reforma Trabalhista de 2017 flexibilizou e regulamentou modalidades de relações de trabalho como o trabalho intermitente, o nível de sindicalização da classe trabalhadora segue em baixa e há uma crescente transformação do assalariamento por tempo (CLT) para o assalariamento por peça (trabalho em plataformas digitais), imaginar que uma lei jurídica proibindo a escala 6×1 da jornada de trabalho terá alguma efetividade na elevação do bem-estar da classe trabalhadora é como imaginar que a meritocracia tem alguma relevância para determinar o salário médio no mercado de trabalho. Mais do que isso, se o Projeto de Lei Complementar 12/2024 (PLC 12/2024) for aprovado, trata-se de um desdobramento da Reforma Trabalhista de 2017, pois ao não reconhecer a relação entre trabalhador e plataforma digital como assalariamento, indiretamente prevê que o tempo de trabalhadores à disposição das plataformas digitais, além das corridas e entregas, também é tempo de trabalho sob a forma de “prestação de serviço”6.
Como demonstrou o sociólogo Francisco de Oliveira em seu ensaio O Ornitorrinco, de 20037, o exército industrial de reserva, necessário em qualquer economia capitalista, constitui-se de maneira peculiar na economia brasileira e cumpre um papel de assegurar o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho, em particular nas cidades. Esse é um dado estrutural da economia brasileira e que não pode ser transformado por meio de uma lei jurídica que o proíba de ser como tal.
Para que possamos realmente avançar na orientação política de reduzir a jornada de trabalho – uma luta histórica e legítima da classe trabalhadora – é preciso compreender o funcionamento da economia capitalista brasileira. Para tanto, a análise dos esquemas de reprodução a partir da teoria econômica de Marx nos revela a centralidade do crescimento do departamento de produção de meios de produção (D-I), seja pela quantidade de valores mobilizados, seja pela capacidade de encadear os ramos da produção social. Isso se mostra de maneira mais evidente no caso da economia brasileira. Nesse sentido, temos inúmeros exemplos de empresas que poderiam ser reestatizadas por razões socioambientais, como a Vale S.A., a Braskem e a Enel, para citar algumas. É importante destacar também o caso da Petrobras, sendo que 1/4 da empresa pertence a um fundo sediado em Nova Iorque, nos EUA, (BlackRock), e está em discussão a possibilidade de extração de petróleo em área de elevado risco (Faixa Equatorial). Quem vai ganhar com isso? Vamos extrair petróleo sob elevado risco socioambiental para rentabilizar capital estrangeiro a troco de que?
Ao longo desse processo de aumento do controle social sobre o D-I da economia brasileira, o próprio regime de governança poderia ser discutido, contribuindo não só para incrementar o controle social sobre a economia brasileira, como também aprimorando os mecanismos de engajamento político da classe trabalhadora.
Professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI/UFU). ↩︎
No dia 14/10, foi publicado novo artigo oriundo da pesquisa EMVA (Estudo Marxista de Valores Adicionados) (MORAES; AZEVEDO, 2024), que pode ser acessado pelo link: https://doi.org/10.13133/2037-3643/18316. Nele, diferentemente de Moraes & Azevedo (2022), duplicamos o tamanho da amostra (de 24 para 48 empresas) e ampliamos a análise até o ano de 2022. No entanto, ainda que tenha mudado os números, o sentido e a dinâmica das tendências observadas anteriormente permaneceu o mesmo.
De maneira geral, a taxa média de lucro da amostra de empresas caiu de 2010 a 2015, recuperou-se a partir de 2016, mas se observa queda novamente entre 2018-2020, recuperação acelerada entre 2020-2021 e outra queda entre 2021-2022. Vale notar que o comportamento da taxa média de lucro da amostra de empresas é praticamente espelhado ao da taxa média de mais-valia no período como um todo. O gráfico abaixo representa o movimento de ambas as séries até 2022.
Considerando o entendimento adotado na pesquisa, de que, o procedimento de transformação de valores em preços de produção é uma forma de operacionalizar a mediação entre o todo (capital social total) e a parte (capital individual), desenvolvida por Marx n’O Capital, Livro III, capítulos 8-10, então a totalidade da economia brasileira pode ser capturada por meio de um conjunto de informações contábeis provenientes das principais empresas operando no país. Nesse sentido, o cotejo com pesquisas marxistas que se fundamentam a partir das Contas Nacionais robustece a capacidade de se formular diagnósticos e proposições sobre a economia brasileira a partir de uma análise crítica da produção social.
É notório no gráfico anterior que há uma tendência de queda da taxa média de mais-valia da amostra de empresas, algo que repercutiu sobre a taxa média de lucro das mesmas. Em particular, nota-se o subperíodo entre 2013-2015 como o de queda mais pronunciada em ambas as séries. Também foi o período de acirramento da crise política brasileira que desembocou no processo de impedimento do mandato da então presidente Dilma Rousseff, que se desenrolou entre dezembro de 2015 e agosto de 2016.
Com a mudança no comando político da economia brasileira, nota-se reversão na trajetória das taxas médias de lucro e de mais-valia. De 2015 a 2018 mostram grande recuperação, alcançando os níveis de 2010-2011. Apesar das significativas quedas observadas entre 2018-2020 e 2021-2022, a tendência geral ao longo de todo o período analisado foi de recuperação desde 2016 em níveis acima dos observados em 2010.
No artigo, elaboramos duas ordens de explicações para isso. Em primeiro lugar, como demonstraram, por exemplo, Marquetti & Hoff & Miebach (2020), entre 2011-2014 houve um crescimento dos salários reais acima da produtividade do trabalho, o que parece ter acarretado uma compressão dos lucros nesse subperíodo. Pode-se também inferir que o progresso técnico não se propagou de maneira homogênea entre os ramos da produção social brasileira. Deve-se considerar também o impacto das Reformas Trabalhista de 2017 e da Previdência de 2019 no aumento da taxa média de mais-valia. Em segundo lugar, deve-se considerar os efeitos econômicos da Operação Lava-Jato de março de 2014 a fevereiro de 2021 (BORGES, 14/07/2018), entre os quais está a destruição de capital oriunda da política de desinvestimentos da Petrobras entre 2015 e 2022 estimado em cerca de R$ 280 bilhões1. Também parece ter sido relevante o impacto das tragédias de Brumadinho e Mariana sobre as decisões de investimento da Vale S.A., que junto com a Petrobras correspondem às maiores empresas em termos de mobilização de valores para investimentos industriais na economia brasileira (LOURAL, 2016, p. 82-96).
Isto é, por um lado, a variação na taxa média de mais-valia oriunda de uma compressão dos lucros, seja devido ao acirramento do conflito distributivo, seja devido à incapacidade de reverter o processo de desindustrialização da economia brasileira, o que aprofunda a heterogeneidade estrutural da produção social brasileira. Por outro, a destruição de capital constante expressada no recuo dos investimentos industriais das empresas Petrobras e Vale S.A. Sobre a segunda ordem de explicação, o gráfico abaixo mostra o comportamento da composição orgânica do capital (c/v) da amostra de empresas ao longo do período.
Por meio da tradução das rubricas contábeis das principais empresas da economia brasileira para a teoria econômica de Marx, pode-se perceber que o departamento de produção de meios de produção (D-I) é o centro dinâmico da economia brasileira. Em sua análise do processo de industrialização no Brasil, Maria da Conceição Tavares ([1978] 1998) destacou o papel preponderante do gasto público coordenado nos departamentos da economia, notadamente por meio de programas de investimento das grandes empresas públicas industriais, para a manutenção de um determinado ritmo da atividade econômica no país.
Com base na análise da economia brasileira revelada pela pesquisa EMVA, uma orientação de política econômica alternativa à implementada ao longo do período diz respeito ao que chamamos de um maior controle social sobre o D-I. Trata-se de uma política econômica que encontra respaldo na realidade contemporânea, como se pode notar pelo estudo O Futuro é Público, do Transnational Institute (TNI), que calcula, entre 2000 e 2020, 1.235 municipalizações e nacionalizações de empresas fornecedoras de serviços estratégicos, como água e energia, em um conjunto de 11 países (Canadá, França, Alemanha, Noruega, Espanha, Reino Unido, Chile, Dinamarca, Malásia, Filipinas, EUA)2. Mais recentemente, o Senado mexicano aprovou uma reforma energética que propõe devolver ao comando do Estado a produção de energia do país sob a condição dos serviços não estarem sujeitos à especulação e ao predomínio dos interesses privados no setor3.
Percebe-se, portanto, a importância e a atualidade do controle social da produção de meios de produção como horizonte para a ação econômica estatal, inclusive no intuito de fomentar o debate sobre as formas de governança mais adequadas para tal.
Loural, M. Investimentos industriais no Brasil: uma análise setorial do período 1999–2013. Tese (Doutorado) — IE/Unicamp, 2016.
Segura Moraes, L., & de Azevedo, R. (2024). On Marx and accounting: An empirical study of the transformation of values into prices of production in the Brazilian contemporary economy, 2010-2022. PSL Quarterly Review, 77(310): https://doi.org/10.13133/2037-3643/18316
Segura Moraes, L., & de Azevedo, R. (2023). Notas para um estudo marxista dos valores adicionados na economia brasileira contemporânea (2010-2021). Nexos Econômicos, 16(1): https://doi.org/10.9771/rene.v16i1.55823
Tavares, M. da C. Ciclo e crise: o movimento recente da industrialização brasileira. IE/Unicamp, Col. “30 Anos de Economia”, n. 8, 1998
Aqui, ao invés de descrever a atuação da concorrência entre capitais na resolução de diferenças entre taxas de lucro de ramos específicos da produção em relação à taxa geral de lucro já estabelecida, o foco residirá na descrição de como, partindo da desigualdade entre taxas de lucro resultada da diferença entre a composição orgânica dos capitais em diferentes ramos da produção, pode-se alcançar a condição de lucros iguais por massas iguais de capital adiantado.
Supõe-se, nesse exercício, além de uniformidade no grau de exploração da força de trabalho entre os ramos da produção, o tratamento dos capitais investidos em termos percentuais, ou seja, sob a condição de que o capital constante se incorpora integralmente no produto anual, a decomposição do valor-produto de um ramo específico da produção nos diz, em relação à fração desse valor que constitui o seu preço de custo, a proporção guardada entre os capitais constante e variável (que é a composição orgânica do capital) e que, consequentemente, cada um deles guarda com o capital investido de 100.
Contabilizemos, antes de abandonar a condição anterior, como se dá, até aqui, a formação da taxa média de lucro, considerando diferenças entre a composição orgânica dos capitais dos diversos ramos da produção na representação dos capitais de I a V:
Capitais
Taxa de mais-valia
Mais-valia
Taxa de lucro
Valor do produto
I. 80c+20v
100%
20
20%
120
II. 70c+30v
100%
30
30%
130
III. 60c+40v
100%
40
40%
140
IV. 85c+15v
100%
15
15%
115
V. 95c+5v
100%
5
5%
105
Total: 390c+110v
–
110
22%
–
Média: 78c+22v
–
22
22%
–
Fonte: Marx ([1894] 2017, O Capital, Livro III, Ed. Boitempo, p. 189-91).
Mas por que, nas duas últimas linhas, estão representados os capitais total e de composição orgânica média? Ora, são nessas representações que se encontra o núcleo da questão. Apenas é possível o cumprimento da exigência dos capitalistas de cada ramo da produção de participar na mais-valia produzido pelo capital social total proporcionalmente à grandeza do seu capital graças ao processo que acontece às suas costas de determinação do valor que, ao governar o movimento da produção, determina também o nível da taxa geral de lucro.
É, sucintamente, como se os diversos capitalistas se comportassem “como meros acionistas de uma sociedade por ações, na qual os dividendos se repartem igualmente por 100, de modo que se distinguem entre si apenas pela grandeza do capital investido por cada um no empreendimento total, pelo número de ações que cada um possui” (Marx, 2017, p. 193). Porém, é necessária, neste momento, a introdução de uma modificação: por mais indiferente que seja a composição do capital constante em componentes fixos e circulantes para a determinação da taxa de lucro, a sua influência sob o preço de custo modifica o valor sob o qual a massa de lucro é adicionada, produto entre o capital adiantado e a taxa média de lucro, na constituição do preço de produção que garante acesso ao butim coletivo, nas condições exigidas pelos próprios capitalistas.
Capitais
Mais-valia
c consumido
Preço de custo das mercadorias
Valor das mercadorias
Preço das mercadorias
Taxa de lucro
Diferença entre o preço e o valor
I. 80c + 20v
20
50
70
90
92
22%
+2
II. 70c +30v
30
51
81
111
103
22%
-8
III. 60c + 40v
40
51
91
131
113
22%
-18
IV. 85c + 15v
15
40
55
70
77
22%
+7
V. 95c + 5v
5
10
15
20
37
22%
+17
Fonte: Marx ([1894] 2017, O Capital, Livro III, Ed. Boitempo, p. 191).
A explicação por trás do estabelecimento, no exemplo numérico de Marx, do nível da taxa geral de lucro em 22% se encontra além dos movimentos de atração e repulsão entre os capitais dos distintos ramos da produção, ou das medidas compensatórias reclamadas entre os capitalistas; sua essência está na massa de mais-valia produzida pelo capital social total (que, nesse caso, não se distingue quantitativamente da massa de lucro) e a razão guardada entre a primeira e o último. Pode-se também dizer que está no capital de composição orgânica média, para o qual a massa de lucro apropriada na venda, pelo preço de produção, de suas mercadorias não difere da massa de mais-valia por ele produzida.
Sendo assim, com a equalização das taxas de lucro os capitais de composição orgânica distinta da média passam por um processo de transferência de mais-valia: daqueles capitais de composição orgânica abaixo da média para aqueles acima da média, resultando num recíproco cancelamento das diferenças entre os preços de produção e os valores das mercadorias, conforme ilustrado acima. Deve-se ter em conta, ainda, que a nível da totalidade o somatório dos valores são iguais aos preços de produção das mercadorias, o que assegura a consistência do modelo.
Fernando José Martins de Paula é graduando em Ciências Econômicas (UFU) e bolsista PET. Contato: fernando.jose@ufu.br ↩︎
Alexander A. Bogdanov foi um polímata soviético e personagem importante na construção do Partido Operário Social-Democrata Russo, ao lado de Lênin, desde sua fundação em 1898. As discussões da Tectologia, publicada entre 1913 e 1928, remontam aos debates entre Bogdanov e Lênin a respeito da natureza do materialismo. Mas é também um trabalho que ultrapassa o período pré-revolucionário. O tradutor de Bogdanov para o inglês, George Gorelik, escreve que a tectologia “se ocupa de regularidades universais estruturais, de tipos universais de sistemas, das leis mais gerais de sua transformação e das leis fundamentais da organização dos elementos da natureza, da experiência e do conhecimento”. A cibernética, o estruturalismo, a teoria geral dos sistemas e a teoria da catástrofe encontram na Tectologia seus fundamentos precursores.
Publicaremos, por partes, uma tradução direta do russo do livro de Bogdanov. A tradução é de Raquel de Azevedo. Bons estudos!
2.
Pois bem, coloquemos assim: nós, humanos, organizadores da natureza, de nós mesmos, de nossa experiência, consideraremos nossa prática, nosso conhecimento, nossa criação artística a partir do ponto de vista organizacional. Mas e as forças elementares da natureza, serão elas organizadoras? Não seria um subjetivismo ingênuo ou uma fantasia poética aplicar o mesmo ponto de vista a seus eventos e ações?
Sim, sem dúvida, a natureza é o primeiro grande organizador; e o próprio ser humano é somente uma de suas obras organizadas. A mais simples das células vivas, visível apenas com milhares de ampliações, excede em complexidade e perfeição de organização tudo o que um ser humano é capaz de organizar. Ele é um aprendiz da natureza e, por enquanto, um aprendiz muito débil.
Mas se os fenômenos da vida podem ser examinados e compreendidos como processos organizacionais, não haveria, fora deles, um vasto domínio do mundo “inorgânico”, da natureza morta que não é organizada? Sim, a vida é uma pequena parte do universo perdida no oceano do infinito; mas inanimado, “inorgânico” não quer dizer desorganizado. Essa velha ilusão, que até recentemente dominava o pensamento da humanidade precisamente em razão de sua debilidade organizadora, chegou ao fim.
A ciência destrói hoje as fronteiras intransponíveis entre a natureza viva e a natureza morta, preenche o abismo entre elas. O mundo dos cristais revelou as propriedades típicas dos corpos organizados, propriedades que antes se considerava que caracterizavam exclusivamente o reino da vida: em uma solução saturada, o cristal conserva sua forma através de um “metabolismo”; ele repara seus danos como se “curasse um ferimento”; sob certas condições de supersaturação, ele “se multiplica”, etc. Entretanto, os cristais sequer são os mais complexos dentre os compostos inorgânicos e as conexões do reino dos cristais com o resto da natureza inorgânica são tais que não se pode falar de diferenças fundamentais, incondicionais. Entre os líquidos, há formações, como os chamados “cristais fluidos”, que possuem a maioria das propriedades cristalinas. Já os “cristais supostamente vivos” de [Otto] Lehmann, obtidos a certas temperaturas do éter etílico, são capazes não apenas de se multiplicar por divisão e “cópula”, ou seja, ligando-se em pares, como também de se alimentar e crescer absorvendo matéria e de se mover de maneira semelhante às amebas: são todas propriedades fundamentais pelas quais os organismos unicelulares inferiores geralmente são definidos.
Por outro lado, também uma simples gota de orvalho numa folha de grama em um ambiente supersaturado pelo vapor cresce e se multiplica por divisão: quando, em razão de seu crescimento, ela se divide em duas, cada uma delas, também aumentando por conta dos vapores precipitados, pode atingir os mesmos tamanhos e também se dividir em seguida. Já sua camada superficial, fisicamente análoga a uma membrana flexível, “protege” sua forma à semelhança das finas membranas flexíveis de muitas células vivas, como as das bactérias, por exemplo.
Reconhecendo certo caráter organizativo nos cristais, seria estranho considerar como “desorganizados” os harmoniosos e titanicamente estáveis sistemas solares e seus planetas, os quais se formaram em miríades de séculos. Para a teoria moderna, a estrutura de cada átomo, com sua espantosa estabilidade, baseada em movimentos incomensuravelmente rápidos e ciclicamente fechados de seus elementos e de suas atividades elétricas, é, à sua maneira, do mesmo tipo que a dos sistemas solares e seus planetas.
A desorganização total é um conceito sem sentido. Em essência, é o mesmo que o próprio nada nu e cru. Na desorganização total, é preciso admitir a ausência de qualquer conexão; mas aquilo que não possui nenhuma conexão não pode representar nenhuma resistência ao nosso esforço, e é somente pela resistência que aprendemos sobre o ser das coisas; portanto, para nós, não há, nesse caso, nenhum ser. A ausência absoluta de conectividade só pode ser pensada verbalmente, nenhuma representação real e viva pode ser inserida nessas palavras, porque uma representação absolutamente desconexa não é, de modo algum, uma representação – em geral, não é nada.
Mesmo o vazio imaginário do espaço ao redor do mundo – o éter luminífero – não é desprovido de uma organização inferior e elementar, além de possuir resistência; somente com uma velocidade limitada o movimento é capaz de penetrá-lo; quando a velocidade de um corpo em movimento aumenta, então, segundo as idéias da mecânica moderna, cresce também essa resistência – inicialmente com uma lentidão imperceptível, depois mais rapidamente; e, no limite, torna-se igual à velocidade da luz, torna-se completamente intransponível ao infinitamente grande.
O raciocínio comum admite esse ponto de vista de maneira latente ao designar os complexos inorgânicos como “sistemas”, o que exprime essencialmente a ideia de um todo organizado, e ao aplicar a eles o conceito de “destruição”, o que não teria nenhum sentido em relação àquilo que fosse absolutamente desorganizado.
Além dos limites da vida, portanto, não se encontram senão os tipos e graus inferiores de organização: a ausência absoluta de organização é inconcebível sem contradição.
Na técnica nos deparamos com a organização das coisas para objetivos humanos; agora a encontramos na natureza extrapolando objetivos humanos. Toda a natureza, por sua vez, atua como um campo de experiência organizacional.
Assim, partindo dos fatos e das ideias da ciência moderna, chegamos inevitavelmente a uma concepção unicamente integral, unicamente monista do universo. Ela se apresenta para nós como um tecido que se desdobra infinitamente, nas mais variadas formas e graus de organização, desde os elementos do éter que nos são desconhecidos até os coletivos humanos e os sistemas estelares. Todas essas formas — em seus entrelaçamentos recíprocos e em sua luta mútua, em suas permanentes transformações — constituem um processo de organização global, que se fragmenta indefinidamente em suas partes, mas é contínuo e indissolúvel em seu conjunto. Assim, o domínio da experiência organizacional coincide com o domínio da experiência em geral. A experiência organizacional é, na verdade, toda a nossa experiência, tomada do ponto de vista organizacional, ou seja, como um mundo de processos que organizam e desorganizam.
Alexander A. Bogdanov foi um polímata soviético e personagem importante na construção do Partido Operário Social-Democrata Russo, ao lado de Lênin, desde sua fundação em 1898. As discussões da Tectologia, publicada entre 1913 e 1928, remontam aos debates entre Bogdanov e Lênin a respeito da natureza do materialismo. Mas é também um trabalho que ultrapassa o período pré-revolucionário. O tradutor de Bogdanov para o inglês, George Gorelik, escreve que a tectologia “se ocupa de regularidades universais estruturais, de tipos universais de sistemas, das leis mais gerais de sua transformação e das leis fundamentais da organização dos elementos da natureza, da experiência e do conhecimento”. A cibernética, o estruturalismo, a teoria geral dos sistemas e a teoria da catástrofe encontram na Tectologia seus fundamentos precursores.
Publicaremos, por partes, uma tradução direta do russo do livro de Bogdanov. A tradução é de Raquel de Azevedo. Bons estudos!
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Capítulo 1. Introdução Necessidade histórica e possibilidade científica da tectologia Parágrafo 1. Ponto de vista organizacional
1.
Toda atividade humana é objetivamente organizadora ou desorganizadora. Isso significa: toda atividade humana — técnica, social, cognitiva, artística — pode ser considerada como um material da experiência organizacional e examinada do ponto de vista organizacional.
Na linguagem comum, atribuímos às palavras “organizar”, “organização” e “atividade organizadora” um sentido mais restrito, mais específico. Mas se quisermos dar aos conceitos uma definição e uma precisão científicas, o sentido comum dessas palavras não pode ser tomado como vago e incoerente.
Na maioria das vezes, o termo “organizar” é empregado quando se trata de pessoas, de seu trabalho, de seus esforços. “Organizar uma empresa”, “organizar um exército” ou uma “campanha”, uma “defesa”, um “ataque”, uma “investigação” etc., significa agrupar pessoas para um objetivo qualquer, coordenar e regular suas ações no espírito de uma unidade adequada. Mas analisemos mais de perto um desses exemplos, digamos o mais típico, “organizar uma empresa”, e logo se evidencia que mesmo aqui o conceito é mais amplo, que não diz respeito apenas às atividades humanas.
Aquele que organiza uma empresa reúne os trabalhadores, combina seus atos de trabalho. Muitos desses atos podem ser substituídos pelos movimentos das máquinas. Quando se introduz uma máquina, diante do organizador se pronuncia a tarefa da seguinte forma: coordenar, isto é, organizar adequadamente as ações dos trabalhadores com o trabalho das máquinas. O objeto organizado são as atividades vivas e mortas tomadas em conjunto.
A máquina é, no entanto, uma das ferramentas, apenas mais complexa que as demais. Na técnica, as ferramentas representam o complemento dos órgãos do corpo, dos elementos de organização da força de trabalho; e o aperfeiçoamento de qualquer instrumento ou a introdução de um novo condiciona o reagrupamento das forças de trabalho ou a modificação da conexão das ações de trabalho. De diferentes modos, isso também se aplica a outros meios de produção. A tarefa aqui é, portanto, organizar as forças de trabalho e os meios de produção em um sistema que funcione de modo ordenado; é a organização de pessoas e coisas em uma unidade adequada.
Quando um inventor combina e constrói uma máquina, ele possui elementos, os quais organiza para um objetivo posto previamente, que funcionam como coisas com energias específicas: uma máquina “morta” pode ser considerada separadamente como um sistema organizado, embora essa característica dificilmente seja familiar ao raciocínio comum.
Em geral, todo o processo de luta do homem contra a natureza, de subordinação e exploração de suas forças espontâneas, não é senão um processo de organização do mundo para o homem, no interesse de sua vida e de seu desenvolvimento. Esse é o sentido objetivo do trabalho humano.
Ainda mais evidente é o caráter organizacional do conhecimento e do raciocínio em geral. Sua função consiste em coordenar os fatos da experiência em agrupamentos coerentes: pensamentos e sistemas de pensamentos, ou seja, teorias, doutrinas, ciências etc.; é isso o que significa organizar a experiência. As ciências exatas organizam toda a técnica moderna da produção mecanizada; só são adequadas para isso porque elas próprias representam a experiência organizada do passado, sobretudo a experiência técnica.
A criação artística tem como princípio a proporção e a harmonia, esse é o significado do caráter organizativo. Com seus métodos particulares, ela organiza as representações, os sentimentos e os humores das pessoas, entrando em contato íntimo com o conhecimento, muitas vezes se fundindo diretamente com ele, sob a forma da literatura, da poesia, da pintura. Na arte, a organização das ideias e a organização das coisas são inseparáveis. Por exemplo, uma construção arquitetônica tomada em si mesma, uma estátua, uma pintura são como sistemas de elementos “mortos” – as pedras, os metais, as telas, as tintas; mas o sentido vital dessas obras reside nos complexos de imagens e emoções que se unem em torno delas na psique humana.
Vemos que a atividade humana, desde suas formas mais simples às mais complexas, resume-se a processos de organização. Resta ainda analisar a atividade que é destrutiva. Se for considerada direta e isoladamente, sua função é desorganizadora. Mas uma investigação mais completa mostra que ela também é o resultado do choque de diferentes processos organizacionais. Ao matar e comer animais, as pessoas desorganizam outros sistemas de vida para organizar os elementos na composição de seu próprio corpo. Se elas exterminam os predadores, é porque encontram neles forças desorganizadoras e, ao eliminá-los, organizam seu próprio ambiente de vida de acordo com seus interesses. Se as sociedades, as classes e os grupos se chocam destrutivamente, desorganizando-se de maneira mútua, é precisamente porque cada um desses coletivos tende a organizar o mundo e a humanidade para si, a seu modo. Esse é o resultado da separação, do isolamento das forças organizadoras, o resultado de ainda não terem sido alcançadas sua unidade, sua organização geral e harmoniosa. É uma luta de formas organizacionais.
No esquema geral, todo o conteúdo da vida da humanidade se desdobrou diante de nós e agora é possível fazer um balanço. O velho professor do socialismo científico, F. Engels, expressou tal conteúdo com a fórmula: produção de pessoas, produção de coisas, produção de ideias. No termo “produção” está oculto o conceito de ação organizadora. Elaboramos uma fórmula mais precisa: a organização das forças externas da natureza, a organização das forças humanas, a organização da experiência.
O que se evidenciou? Que a humanidade não tem outra atividade senão a organizacional, não tem outros problemas senão os organizacionais. Assim, todos os interesses da humanidade são organizacionais. E disso se segue: não pode e não deve haver outro ponto de vista sobre a vida e o mundo que não seja o ponto de vista organizacional. E se isso ainda não é reconhecido, é apenas porque até aqui o raciocínio das pessoas ainda não saiu completamente dos invólucros do fetichismo que o envolveram no caminho do desenvolvimento.
Uma das frentes de pesquisa da base de dados EMVA é simular o impacto das transformações do regime climático, especialmente no que diz respeito aos seus efeitos na regularidade das safras agrícolas, indicando como tais transformações podem afetar os custos das empresas produtoras de alimentos e o equilíbrio intersetorial da economia brasileira. Para tanto, procuramos avaliar as possíveis consequências da variação nos preços dos alimentos, decorrentes das mudanças no clima, na condição de equilíbrio intersetorial da economia a partir da análise dos esquemas marxianos de reprodução do Livro II d’O Capital. Formulam-se duas hipóteses: 1) as dificuldades de produção de alimentos acarretarão maior absorção relativa de capital constante no setor de produção de meios de consumo; 2) considerando a argumentação de Rosa Luxemburgo de que parte da reprodução do capital total se dá através da produção de meios de produção e meios de consumo que não estão submetidos à produção capitalista, o desmatamento é um dos componentes da condição de equilíbrio entre os setores na economia brasileira.
As empresas que compõem a EMVA 1.0 foram separadas em quatro setores: de produção de meios de produção, de produção de meios de consumo, de comércio de dinheiro e de comércio de mercadorias. O cálculo da condição de equilíbrio intersetorial, entre os anos de 2010 e 2021, envolve, de um lado, o capital constante e a mais-valia destinada a ampliar o capital constante no setor de produção de meios de consumo e, de outro, o capital variável, a mais-valia destinada a ampliar o capital variável e a mais-valia destinada para consumo improdutivo nos setores de produção de meios de produção, de circulação de dinheiro e de circulação de mercadorias. É nessa segunda parte que a evolução dos dados do desmatamento deve ser considerada.
Analisamos a relação da condição de equilíbrio entre os setores com os dados de alteração da cobertura florestal dos biomas brasileiros a partir das informações disponibilizadas pelo sistema DETER e pelo projeto PRODES, ambos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Os dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), elaborados segundo as diretrizes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e com base na metodologia dos Inventários Brasileiros de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases do Efeito Estufa, elaborado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), indicam que, no caso brasileiro, as mudanças no uso da terra são responsáveis pela maior parte da emissão de CO2 equivalente (que constitui o conjunto de gases causadores do efeito estufa, como dióxido de carbono, metano e óxido nitroso) no período analisado. Considerando que o desmatamento na região amazônica está relacionado com a alteração do regime de chuvas na região centro-sul do Brasil através do fenômeno dos “rios voadores”, como descreve Nobre (2016), no relatório O futuro climático da Amazônia, e que pelos aquíferos que abriga (Guarani, Urucuia e Bambuí), o bioma do Cerrado esteja, por oposição à região amazônica, na origem dos “rios subterrâneos”, é possível estimar, por um lado, em que medida a evolução do equilíbrio intersetorial na economia brasileira incorpora as transformações climáticas provocadas pela redução na cobertura florestal no norte e no centro-sul do país. E de outro, a proposta é indicar em que medida o ritmo de desmatamento compõe a condição de equilíbrio na economia brasileira.
Com isso, argumentamos que os esquemas de reprodução de Marx podem ajudar a capturar e mapear os impactos das mudanças no regime climático na economia brasileira. Não se trata de apenas estimar o custo monetário da emissão de gases do efeito estufa, pois a condição de equilíbrio intersetorial não se restringe a apreender fluxos monetários. Embora as progressivas quebras de safra e o encarecimento da produção de alimento se expressem também como fenômenos monetários, sua origem nas mudanças climáticas ficaria sempre encoberta por incontáveis mistificações, dado o processo gradual em que essas transformações aparecem nos preços, se não consideramos a reprodução do capital enquanto processo que é, a um só tempo, material e social, como explica Burkett (2004), em Marx’s reproduction schemes and the environment. É verdade que os esquemas evidenciam o quanto a reprodução do capital depende da unidade entre valor e valor-de-uso que caracteriza a produção capitalista. Mas ao compará-los com os dados do desmatamento dos biomas brasileiros, buscamos enfatizar os aspectos da produção material, em detrimento de sua forma monetária, na relação entre os setores. Mais do que isso, a proposta é que o uso combinado dos esquemas de reprodução de Marx com dados que ajudam a mapear a mudança no regime climático no país sirva como ferramenta de planificação econômica. Como na definição de Martín Arboleda (2021), em Gobernar la utopia, entendemos a planificação enquanto forma mediada de existência do futuro. A tarefa da planificação econômica é a gestão ex ante dos recursos, em contraposição à gestão ex post levada a cabo pelo mercado. E os instrumentos técnicos da planificação não são senão a expressão mediada das visões de futuro. Trata-se aqui, com o estudo combinado da condição de equilíbrio intersetorial da economia brasileira e das transformações do regime climático, de construir a infraestrutura informacional daquilo que Mandarini e Toscano (2020) denominaram, em Planning for conflict, de planejamento para o conflito. Isto é, não se trata de neutralizar as relações antagônicas da sociedade, que se aprofundam com as dificuldades de produção de alimentos decorrentes das mudanças no clima, mas de dar-lhes uma retaguarda institucional.
Fonte: PACIOLI, Luca. Summa de arithmetica, geometria, propori et proporcionalita. 1494
A base de dados EMVA 1.0 consiste em uma proposta de organização das informações contábeis das empresas citadas no indicador Ibovespa, no intuito de traduzir rubricas da Demonstração de Valor Adicionado (DVA) e do Balanço Patrimonial para a teoria econômica marxista. As informações contábeis das empresas que compõem a carteira do Ibovespa foram organizadas a partir da base de dados EMVA 1.0, cujo arquivo (.xlsx) referente à uma amostra selecionada de empresas está disponível para baixar: EMVA 1.0.
O objetivo é analisar algumas tendências e contratendências gerais da concorrência real na economia brasileira, assim como mapear critérios de produção e apropriação da mais-valia global. O período de início das informações é o ano de 2010, pois foi apenas a partir da Lei Nº 11.638 de 2007 que a Demonstração do Valor Adicionado (DVA) passou a ser obrigatória para companhias abertas no Brasil (ASSAF NETO, 2021, p. 102).
Apresentamos aqui a fundamentação teórica para uma organização e tradução em termos marxistas das informações contábeis coletadas das principais empresas em volume de capital adiantado listadas no Ibovespa. As empresas foram separadas em quatro setores ou departamentos da produção nacional, conforme indicado por Marx ([1885] 1985, p. 293) e Marx ([1894] 1986, cap. 16): D-I – Produção de Meios de Produção, D-II – Produção de Meios de Consumo, D-III – Comércio de Dinheiro, e D-IV – Comércio de Mercadorias.
Considerando as definições contidas em Assaf Neto (2021) e no documento técnico nº 9 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis sobre a DVA (CPC, 2008), assumimos como capital constante circulante (cc) a totalidade do capital constante que entra integralmente na formação do valor das mercadorias no período de uma rotação, incluindo, portanto, a depreciação do capital fixo. Para tanto, somamos as rubricas “Insumos adquiridos de terceiros” e “Depreciação, Amortização e Exaustão” que constam nos demonstrativos anuais de cada empresa. Por sua vez, o capital constante fixo (cf) é constituído pelas rubricas “Imobilizado” e “Intangível líquido”, além da rubrica “Estoques”, que, embora seja capital circulante por definição, comporta-se, na contabilidade das empresas, como capital fixo. Isso porque, em termos marxistas, no período de rotação do capital o valor dos estoques permanece fixado na esfera de produção da empresa. Ainda que sejam valores com vencimento a curto prazo e por isso são parte do ativo circulante, na prática atuam como se fossem parte do capital fixo, haja vista que a contabilização deles é referente ao ano todo registrada até o dia 31/12. Considerando que “[…] o ano constitui a unidade natural de medida das rotações do capital em processo” (MARX, 1985, cap. 7, p. 115), então em 31/12 a rubrica Estoques expressa parte do valor de capital em circulação que não circulou ao longo do ano, comportando-se, portanto, como capital fixo.
O capital variável (v) foi calculado a partir dos dados do item “Pessoal” na rubrica “Distribuição do Valor Adicionado”. A massa de mais-valia produzida (mp) consiste na soma das “Receitas” oriundas de “Vendas de Mercadorias, Produtos e Serviços” (RT2), “Outras Receitas” (RT3) e “Provisão/Reversão de Créds. Liquidação Duvidosa” (RT4), menos o preço de custo da empresa (k), isto é, os montantes de capital constante circulante e de capital variável (cc+v). Já a massa de mais-valia apropriada (ma) é resultado da soma de todas rubricas “Receitas” (RTtotal = RT1 + RT2 + RT3 + RT4), sendo RT1 o “Valor Adicionado Recebido em Transferência”, deduzido o preço de custo (k). Ou seja, considera-se não apenas a mais-valia produzida pelo capital individual, mas também a mais-valia apropriada em outras esferas de produção, “como por exemplo receitas financeiras, de equivalência patrimonial, dividendos, aluguel, royalties, etc.” (CPC, 2008, p. 4). Das “Receitas” se deduz o capital constante circulante e o capital variável consumidos pela empresa para obter a massa de mais-valia apropriada no período de uma rotação do capital, isto é, um ano. As demais deduções das que caracterizam a distribuição da mais-valia apropriada aparecem nos itens “Impostos, Taxas e Contribuições” (t), “Remuneração de Capitais de Terceiros” (j) e “Remuneração de Capitais Próprios” (h).
ASSAF NETO, Alexandre. Estrutura e análise de balanços: um enfoque econômico-financeiro. Ed. Atlas, 2021.